ONU e o enfrentamento às drogas

O fim do primeiro século de enfrentamento às drogas (que teve início em Xangai, no ano de 1909) coincidiu com o término da década UNGASS (Sessão Especial da Assembleia Geral sobre Drogas, lançada em 1998). Esses marcos estimularam a reflexão acerca da efetividade, e também das limitações, da política sobre drogas. Essa reflexão resultou na reafirmação de que as drogas continuam a exercer perigo à saúde da humanidade. Por esta razão são, e devem continuar sendo, combatidas. A partir dessa premissa, os Estados-Membros reiteraram total apoio às Convenções que a ONU estabeleceu no sistema mundial de enfrentamento às drogas.

Simultaneamente, o UNODC ressaltou alguns efeitos negativos, e obviamente indesejados, do controle das drogas, realizando um necessário debate acerca dos modos e meios para lidar com esses efeitos. Recentemente, tem-se ouvido algumas poucas vozes, porém em número crescente, entre os políticos, a imprensa e até na opinião pública, dizendo: o enfrentamento às drogas não está funcionando. E a frequência na disseminação dessa mensagem está em ascensão.

Grande parte desse debate público é caracterizada por amplas generalizações e soluções simplistas. Porém, a essência da discussão sublinha a necessidade de se avaliar a eficácia da atual abordagem. Após um estudo do problema, com base em nossos dados, o UNODC concluiu que, considerando que mudanças são necessárias, elas deveriam focar em diferentes meios para proteger a sociedade das drogas, ao invés de perseguir uma meta diferente de abandonar essa proteção.

A. O que é o debate sobre o fim do controle às drogas?

Diversos argumentos têm surgido em favor do fim do controle às drogas, baseados nas áreas (I) econômica, de (II) saúde e de (III) segurança, além de combinações entre as três áreas.

I. O argumento econômico para a legalização diz: legalize as drogas e gere mais impostos. Esse argumento está ganhando espaço à medida que as administrações nacionais buscam novas fontes de receita durante a crise econômica atual. Esse argumento “legalize e taxe” é antiético e antieconômico. Ele propõe uma taxa perversa, de geração sobre geração, em cima de grupos marginalizados (entregues ao vício), a fim de estimular a recuperação econômica. Serão os partidários dessa causa também favoráveis à legalização e à taxação sobre outros crimes abomináveis, como o tráfico de pessoas? Os escravos modernos (que são milhares) certamente gerariam boas receitas em impostos para recuperar bancos falidos. O argumento econômico também está baseado em uma lógica fiscal frágil: qualquer redução no custo do controle das drogas (devido a gastos mais baixos com a fiscalização) será compensada por um gasto com a saúde pública muito maior (devido ao aumento no consumo de drogas). Moral da história: não transforme transações perversas em legais só porque elas são difíceis de fiscalizar.

II. Outros defendem que, com a legalização, uma ameaça à saúde (na forma de uma epidemia de drogas) poderia ser evitada a partir de regulação por parte do Estado ao mercado de drogas. Novamente isso é ingênuo e míope. Primeiramente, quanto mais leve é a fiscalização (em tudo), maior será e mais rapidamente emergirá um mercado paralelo (do crime) – invalidando, desta forma, o conceito. Em segundo lugar, apenas poucos países (os ricos) poderiam financiar meios de controle tão elaborados. E o resto da humanidade (que é a maioria)? Por que deflagrar uma epidemia de drogas nos países em desenvolvimento em nome de um discurso de liberalização, ostentado por um lobby de quem se dá ao luxo de ter acesso a tratamento contra as drogas? As drogas não são prejudiciais porque são ilegais – elas são ilegais porque são prejudiciais. E causam prejuízos tanto aos viciados ricos e bonitos, quanto aos pobres e marginalizados.

Por que deflagrar uma epidemia de drogas nos países em desenvolvimento em nome de um discurso de liberalização, ostentado por um lobby de quem se dá ao luxo de ter acesso a tratamento contra as drogas?

As estatísticas sobre drogas continuam falando em alto e bom som. O crescimento desenfreado observado no passado perdeu força e a crise dos anos 90 parece estar sob controle. O Relatório 2009 (World Drug Report 2009) traz evidências de que o cultivo de drogas (ópio e coca) está estável ou em declínio. E mais importante: os maiores mercados de ópio (Europa e o Sudeste Asiático), de cocaína (América do Norte), e de maconha (América do Norte, Oceania e Europa) estão diminuindo. O aumento no consumo de estimulantes sintéticos, principalmente no Leste Asiático e no Oriente Médio, é motivo de preocupação, ainda que o uso dessas substâncias esteja diminuindo nos países desenvolvidos.

III. As preocupações mais sérias estão relacionadas ao crime organizado. Mas todas as atividades de mercado fiscalizadas pelas autoridades geram transações paralelas e ilegais, como dito anteriormente. O controle das drogas inevitavelmente gerou um mercado criminoso de dimensões macroeconômicas, que se utiliza da violência e da corrupção para intermediar a demanda e o fornecimento. Com a legalização das drogas, o crime organizado perderia sua linha de atividade mais lucrativa, afirmam os críticos.

Pois não é bem assim. O UNODC está ciente da ameaça que representam as máfias internacionais de drogas. Nossas estimativas sobre o valor do mercado de narcóticos (em 2005) foram inovadoras. O Escritório também foi responsável pelo primeiro alerta sobre a ameaça do tráfico de drogas em países do Leste e do Oeste da África, do Caribe, da América Central e dos Bálcãs. Com isso, ressaltamos a ameaça que o crime organizado representa à segurança, um problema que hoje é periodicamente abordado pelo Conselho de Segurança da ONU.

Tendo iniciado esse debate sobre drogas/ crime, e após longa ponderação, concluímos que esses argumentos sobre o crime organizado relacionado às drogas são válidos. Eles devem ser considerados. Peço urgência aos governos que rearranjem a combinação de suas políticas, sem perdermos mais tempo, aumentando o enfrentamento ao crime, sem diminuir o enfrentamento às drogas. Em outras palavras, enquanto o discurso sobre a criminalidade das drogas está certo, as conclusões alcançadas por seus propositores são imperfeitas.

Por que? Pois nós não estamos aqui contando feijão, estamos contando vidas. A política econômica é a arte de se contar feijão (dinheiro) e de se administrar os dilemas: inflação versus emprego, consumo versus poupança, balança comercial interna versus externa. Com vidas é diferente. Se começarmos a comercializá- las, terminaremos violando os direitos humanos de alguém. Não pode haver trocas, nem compensações quando a saúde e a segurança estão em risco: a sociedade moderna deve, e pode, proteger ambos os problemas com absoluta determinação.

 

Faço um apelo aos heróicos partidários da causa dos direitos humanos em todo o mundo que auxiliem o UNODC a promover o direito à saúde dos viciados em drogas: eles precisam ser assistidos e reintegrados à sociedade. O vício é uma questão de saúde e aqueles que estão afetados por ele não devem ser presos, feridos ou, como sugerido pelos proponentes desse argumento, comercializados, a fim de reduzir a ameaça à segurança por parte das máfias internacionais. De fato, esse último argumento deve ser abordado, e abaixo seguem nossas sugestões para isso.

B. Um conjunto de medidas mais bem equilibrado

A relação entre drogas e crime foi o assunto de um relatório intitulado O Crime Organizado e sua Ameaça à Segurança: atacando uma consequência perturbadora do controle das drogas *(1) que apresentei à Comissão sobre Narcóticos e à Comissão sobre o Crime em 2009. Devido à importância desse tema, direcionamos o capítulo temático do Relatório deste ano para uma análise mais aprofundada do problema e de suas implicações políticas. E aqui estão alguns dos pontos principais. Primeiramente, o foco de penalização deve mudar do usuário de drogas para o traficante. O vício das drogas é uma questão de saúde: as pessoas que usam drogas precisam de ajuda médica, e não de sanção criminal. A atenção deve ser dada aos usuários que fazem uso intenso de drogas. São eles que consomem a maior parte das drogas, causam um enorme dano a si mesmos e à sociedade – e geram a maior renda para as máfias de drogas. O acompanhamento e a assistência médica tendem a construir sociedades mais saudáveis e seguras do que o encarceramento. Peço aos Países-Membros que busquem a meta de acesso universal ao tratamento de usuários de drogas como compromisso de salvar vidas e de reduzir a demanda de drogas: a queda no fornecimento e das receitas relacionadas às drogas serão consequência disso. Vamos avançar em direção a essa meta nos próximos anos e então avaliar seu impacto benéfico na próxima reunião dos Estados-Membros, a fim de revisar a eficácia da política de enfrentamento às drogas (2015).

Em segundo lugar, devemos por fim à tragédia que são as cidades sem o controle das autoridades. As vendas de drogas, assim como outros crimes, ocorrem mais frequentemente em áreas urbanas controladas por grupos criminosos. E esse problema será ainda mais grave nas megalópoles do futuro, caso as autoridades não acompanhem a urbanização. Até porque prender indivíduos e apreender drogas para uso pessoal é como limpar ervas daninhas – deve ser feito novamente no dia seguinte. O problema somente pode ser solucionado com o enfrentamento ao problema das favelas e do abandono das nossas cidades, por meio de recuperação da infraestrutura e de investimento nas pessoas – especialmente na assistência aos jovens, que são vulneráveis às drogas e ao crime, com educação, trabalhos e esporte. Os guetos não criam viciados e desempregados: frequentemente ocorre o inverso. E é nesse processo que os criminosos prosperam.

Em terceiro lugar, e este é o ponto mais importante, os governos devem se utilizar, individual e coletivamente, dos acordos internacionais contra os transgressores. Isto significa ratificar e aplicar a Convenção da ONU contra o Crime Organizado (TOC) e contra a Corrupção (CAC), e os protocolos relacionados ao tráfico de pessoas, armas e migrantes. Até agora, a comunidade internacional não tem levado a sério esses comprometimentos internacionais. Enquanto os moradores das favelas sofrem, a África vive sob ataque, os cartéis do narcotráfico ameaçam a América Latina e criminosos se apropriam de instituições financeiras falidas, negociadores inexperientes discutem nas Conferências e Convenções sobre questões burocráticas e noções obscuras de inclusão, propriedade, alcance e não-ranqueamento. Há inúmeras lacunas na implementação das Convenções de Palermo e de Mérida, anos após a entrada delas em vigor, a ponto que vários países enfrentam problemas com o crime, amplamente causados por suas próprias escolhas. E isso já é ruim o bastante. Pior ainda é o fato de que, com frequência, vizinhos vulneráveis pagam um preço ainda mais alto por isso. Há muito ainda a ser feito por nossos países, a fim de enfrentar a força brutal do crime organizado: o contexto interno no qual os criminosos operam também deve ser abordado.

Ramzi Haidar/AFP
Até agora a campanha pela legalização das drogas vem, felizmente, sofrendo oposição por parte da maior parte da sociedade.

• A Lavagem de dinheiro ocorre em grande escala e praticamente sem oposição, em um período em que os empréstimos interbancários secaram. As recomendações concebidas para prevenir o uso de instituições financeiras para a lavagem de dinheiro de origem ilícita hoje estão sendo violadas. Em tempos de grandes falências dos bancos, os banqueiros parecem acreditar que o dinheiro não tem cheiro. Cidadãos honestos, que estão lutando em tempos de dificuldades econômicas, querem saber porquê os crimes – transformados em imóveis, carros, barcos e aviões ostentosos – continuam não sendo apreendidos.

• Outro contexto que merece atenção é relacionado a um dos maiores bens da humanidade, a internet. Ela mudou nossas vidas, especialmente a forma com que conduzimos os negócios, a comunicação, a pesquisa e o entretenimento. Porém a internet também se transformou em uma arma de destruição em massa pelos criminosos (e terroristas). De forma surpreendente, e apesar da atual onda de crimes, chamados por novas formas de ação contra a lavagem de dinheiro e os crimes cibernéticos continuam sem resposta. Nesse processo, a política sobre drogas leva a culpa e é subvertida.

C. Um duplo “NÃO”

Para concluir, o crime organizado transnacional jamais será eliminado pela legalização das drogas. Os cofres das máfias são igualmente nutridos pelo tráfico de armas, de pessoas e seus órgãos, pela falsificação, pelo contrabando, pela extorsão e pela agiotagem, além de sequestro, pirataria e agressões ao meio ambiente (desmatamento ilegal, despejo de lixo tóxico etc.). O argumento sobre a relação drogas/crime, como discutido acima, não passa de uma antiga campanha de legalização das drogas, defendida insistentemente pelo lobby pró-drogas (note-se que os partidários dessa ideia não ampliariam o conceito para as armas, cujo controle – segundo eles – deveria ser realizado amplamente: literalmente, não às armas, sim às drogas).

Até agora a campanha pela legalização das drogas vem, felizmente, sofrendo oposição por parte da maior parte da sociedade. As políticas de enfrentamento ao crime devem, sim, mudar. Não basta mais dizer não às drogas. Temos que afirmar com a mesma veemência: não ao crime.

Não há alternativa senão a melhoria tanto da segurança, quanto da saúde. O fim da restrição às drogas é um erro épico. E igualmente catastrófica é a atual negligência diante da ameaça à segurança representada pelo crime organizado.

 

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